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Parêntese para lusófonos - 7 ... Caíram te os anéis…


Lembro me de ti, menina Teresinha, empoleirada no muro do latifúndio, os sapatos brancos de presilha, as brancas meias, umas pernas de pele alva e uns joelhos redondos que não conheciam esfoladela aparecendo por baixo da saia arrendada do branco vestido, uma fita de cetim cor de rosa à cintura com um lindo nó nas costas, umas manchas no peitoril, sumo escorrendo pelo queixo desde a boca que mordia gulosamente num milagroso pêssego, os olhos verdes trocistas olhando para nós, mísera plateia de meninos famintos e sujos pelo pó dos caminhos.

Era sabido: os Lopes nunca tinham pena de ninguém.

Os tios pediram uma vez humildemente ao Sr. Lopes, já que ia á vila, que desse boleia á menina da praia que vinha na carreira para trabalhar no moinho. Mas no jipe ias tu, menina Teresinha, que torcestes o nariz á cesta do peixe, e a menina ficou apeada, metendo pés ao caminho (que estrada só haveria uns trinta e tal anos depois), barrancos acima e abaixo pelo calor alentejano, a cesta em equilíbrio sobre a cabeça e os oito anos, amparada por uma mão, o alforge com as magras pertences ao ombro.

Ao ver chegar o jipe sem a criança, “aceitei trazer uma criança, não uma peixeira”, foi o tio Augusto, resmungando “cabrão dum corno do Lopes, nem duma criança tem dó, duas léguas por cerros e barrancos com este calor de matar…”, que arreou o burro e meteu se ao caminho, não sem levar uma infusa pois só passando a ribeira, quase já no monte, poderia a criança matar a sede.

Tinhas um irmão um ano mais velho, o menino João Maria, que deu o salto até aos anjos com a moto voando pelo barranco. Talvez castigo de Deus por ser bom, por não enquadrar na ordem estabelecida: vinha ter connosco ás escondidas, sempre trazia farnel ao qual não tocava, dava nos fruta, sandes de carne, fatias de bolo, tudo o que podia subtrair à vigilância da Carminda, a cozinheira, credo, este moço anda sempre esfaimado…

Sabia se de fonte certa, a Zulmira, criada dos meninos, que tomavas banho de espuma perfumada e que te entediavas na banheira. E os teus caracóis eram feitos com um ferro redondo, sempre os recordo quando vejo a estátua do Marquês de Pombal obra do Cutileiro…

Nós todas as noites íamos ao poço vigiados pela Encarna que era a mais velha, “pobres e humildes, ordinários mas educados e sobretudo asseados, vá lagartixas, toca a ensaboar dos xavelhos aos artelhos sem esquecer os pintelhos que Deus ainda não vos deu, e acabar pelas patas que de animais não são”, e muito nos riamos salpicando nos com a água fresca e com a barra de sabão azul e branco sempre a escorregar das mãos.

Tua mãe, diáfana criatura, não sobreviveu a tanta bruteza conjugal e parto abortado. Ficaste cedo sem mãe e o Sr. Lopes não mais deu paz á gente, multiplicando tarefas e bastardos…

No frio inverno alentejano as chaminés do latifúndio fumegavam, achas em cada lareira, lareira em cada quarto, cada sala… enquanto os tios e os primos se aqueciam aconchegando se uns aos outros, na lareira da peça única da casa ardiam as arreigotas, pacientemente roubadas à terra, num fogo magro que só aquecia a água do café e a sopa.

No frio húmido da praia uma velha e uma criança aconchegavam se numa enxerga de algas com dois cães e um burro aquecendo se uns aos outros, o vento salgado silvando pelas frinchas da casa de madeira e remendos de chapa, os jornais torcidos com que se tentava tapá-las ensopando se e desfazendo se dia após dia…

Passaram os anos, a menina Teresinha foi estudar para a capital enquanto os meios-irmãos ignorados vinham engrossar o rol da escravatura. Cada vez menos por cá aparecia, imagem de revista com roupa que aqui não lembrava a ninguém, a prega do desprezo que lhe marcava o canto dos lábios acentuando se.

Dizia se que fazia colecção de namorados, era bonita, dotada, mimada. Mas não se sabe porque não casou.

Mudaram os tempos, o Sr. Lopes não aguentou já não poder mandar, deu lhe um baque e foi um triste enterro, que qualquer um dos seus servos teve mais acompanhamento até á última morada: caixão de primeira e meia dúzia de familiares, sempre se colhe o que se semeia…até na morte.

E, os últimos dinheiros mal gastos, voltastes para o latifúndio ao abandono. A memória não é curta, passastes a ser transparente para os mesmos que desprezastes.

Vives nas ruínas do que foi teu, vais cultivando umas coisitas para sobreviver, criando umas galinhas que te verias á rasca para degolar, depenar, vazar…não fosse o Malhão.

O Malhão é um simplório que apareceu vindo donde não se sabe, era uma criança suja sem nome e sem fala, o rosto com largas manchas vermelhas, Malhão se lhe chamou, e depressa o encarregado do Sr. Lopes viu o partido que poderia tirar do mudo moço. Por cá ficou, dormindo num palheiro, comendo o que se lhe dava, e agora segue aí servindo sem paga o que resta da menina Teresinha…certamente porque não tem raciocínio para mais.

No monte todas as casinhas são sempre caiadas, as barras de cor pintadas, vasos de flores às portas… só a tua mansão, a casa grande como lhe chamávamos, tal uma chaga no meio de tanta alvura, vai se em escamas… o jardim, orgulho da tua mãe, agora feito esterco, grandeza e decadência…

Abandalhastes. Andas suja, desdentada, desgrenhada e cada vez mais desleixada. Quando te vejo quase tenho vontade de dar te uma esmola. Mas a memória não é curta, e se me metes dó não consigo ter pena de ti.


Como sempre o autor inventou tudo, sobretudo quando como eu vem de outro planeta… por isso fique aqui dito que qualquer semelhança com gentes ou lugares desta terra é mera coincidência e não implica qualquer responsabilidade por parte do autor.

3 comments

Armando Taborda said:

Gosto! Surpreendestes, utilizando o teu tempo de verbo aldeão / popular? Será?

Se assim for os termos "voltastes", "passastes", etc, poderão ser aceitáveis se os puseres entre aspas.

O texto, como outros já escritos na mesma onda, têm a frescura das cenas simples, naturais e socialmente "incorrectas" por ti vividas num passado difícil ao qual, contudo, sobreviveste sem rancor.

É esse quase amor contido e uma ironia muito popular que caracteriza os teus apontamentos biográficos, que aqui ficam digitalmente registadas, ou em livro?, para a memória etnográfica do inconsciente colectivo lusitano.
12 years ago ( translate )

Xata replied to Armando Taborda:

E isso mesmo, o falar aldeão volta quando lá estou ou sobre o tema escrevo... não sei se ponha aspas ou tire os "s"! Ou se deixe assim, entenda como tu entendesteS quem entender!!!

Falaram me em mandar para jornais... mas eu não busco publicidade, sinto me bem no meu anonimato. Não sei. Tenho mais vivências e sentimentos para deitar para o papel, em seu tempo, sem esforçar...

Rancor não tenho, aceitação do que não aceitei, um certo desespero por ver que muitas esperanças saíram goradas, que o materialismo tornou se filosofia...
As pessoas que guardam rancor não progridem...

Este inconsciente vai morrer com a nossa geração?
Um amigo mais novo fala com saudade do monte da sua infância, sem calçadas, sem luz, com os burros, os cães e as galinhas no meio da gente... e das inocentes partidas que se pregavam as pessoas, trocar a roupa dos estendais, os vasos dos quintais... da solidariedade que existia entre os pobres, todos unidos pela mesma servidão e apetite...

Não vivo no passado, seria sofrimento vão, não vou negar que a vida está melhor e que o progresso tem muitas coisas boas de que gosto de usufruir, mas não posso esconder umas certas saudades.
12 years ago ( translate )

Xata said:

É uma homenagem aos que amo e de quem estou orgulhosa e que, mesmo se se dão conta de que a vida me proporcionou outras vivências, continuam a aceitar me como o que na realidade sou e nunca deixarei de ser: a menina da praia.
12 years ago ( translate )