A primavera sentia se no céu e no cheiro das árvores, na intensidade dos sons, no cantar dos pássaros, na temperatura já tíbia daquela manhã em que João saiu cedo de casa para ir às compras.
Atestou o depósito nas bombas da rotunda do aeroporto, comprou 4 bilhas de gás, 20 garrafões de água do Luso, fósforos e velas, mantimentos para encher a despensa, pelo menos que dê para o mês.
Caso fosse preso ou morto.
E comprou um ramo de cravos brancos encristados de vermelho, os preferidos da Menina Lua.
Ao fim da tarde levou o cão pastor à rua.
Depois afagou demoradamente a companheira ainda muito fraca pelo sofrido, acendeu o rádio e disse lhe de ficar atenta, por volta da meia-noite, e que não mudasse de emissora.
Que não saísse de casa, por nada minha Lua, eu volto tarde mas volto. E trocaram a senha que era só deles, selando um pacto em palavras, o que é uma cassete meu amor, é uma caixinha rectangular…
Estávamos a 24 de Abril de 1974, liberta há pouco, a moça magra e alquebrada teve o triste sorriso resignado de quem já não tem forças no corpo para obedecer à vontade da mente.
Saiu João pela noite que assombravam promessas ou derrota, paradoxalmente aliviado por deixar a companheira. Por ela não ter falado nem ter tido um gesto ou palavra de censura desde que saíra do hospital, o peso da culpa era ainda maior chumbando lhe os sentimentos.
Grândola, vila morena....
Noite avançada na excitação da vitoria, na justificação para tanto sacrifício, João volta a casa, pega na companheira ao colo e voa pela sala numa louca dança de alegria, vencemos minha Lua, não foi em vão, vamos para a rua, vamos celebrar.
Lua escolhe uma camisa alegre e um lenço a condizer, enrola-o à volta da cabeça cujos cabelos ainda não tiveram tempo de crescer, com o terem lhe tesourado a sua única beleza ela não se conformara.
Horas de euforia popular no auge, João evitando as zonas onde ainda havia refrega, os carrascos fazendo jus aos seus tristes pergaminhos num último sobressalto de indignidade.
Olha bem, minha Lua, grava na tua memória e para sempre este dia que é único, verás no primeiro de Maio, já estarão todos arrumados por partidos fazendo cálculos, puxando a brasa à sua sardinha… Nunca mais verás uma tal união do povo, todos os ideais resumidos nesta palavra: liberdade!
Idas e voltas entre casa e os seus afazeres, João nem dorme, nada acabou, há que libertar os camaradas…
Vão sair os de Caxias, anda minha Lua, temos que os abraçar!
Nas trevas iluminadas muitos homens e algumas mulheres saíram celebrados com lágrimas de alegria, a Lua tirou o cravo que levava preso no lenço e deu o a uma desconhecida, bem vinda a este novo mundo, companheira liberta…
…valeu a pena, valeu a pena!
Recordações como slides desordenados flutuando no magma vítreo dum ser então em reconstrução, fotogramas de luz e emoção intensas são o que lhe resta desses dias, hesitante quanto à sua cronologia.
Terá valido a nossa pena, a pergunta fica feita, será que foi para chegar a isto que lutámos e sacrificámos?
De fascismo que dava a cara transitámos por uma democracia que depressa vendeu a alma aos antigos demónios, agora chamo lhe fascismo encoberto… está nas mãos dos mais novos tomar exemplo, lutar por eles e pelos filhos que têm ou tiverem.
8 comments
cortomaltese91 said:
bon, tu nous traduira ça un de ces 4 :)
Xata said:
Armando Taborda said:
Xata said:
O que é certo é que não foi par isto que lutámos.
Armando Taborda replied to Xata:
Xata said:
Xata said:
Xata replied to :
Nos meus textos há parte da minha vida e parte da vida dos meus, para mim fazem um todo. De momento tenho a pena encravada, há coisas que demoram em sair... e a vontade de matar dum clic de rato (não sou capaz de passar ao acto real) tanto as tontas ovelhas como os astutos pastores está também presente em mim, então procuro refugio na minha visão poética da natureza.
Bem, vou à 4ª bica do dia, um abraço para ti,
Isabel