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Parêntese para lusófonos - 3

A velhota e a criança.

Velha e dobrada pela dor do marido perdido e na miséria por ganância de enteados, numa ilha batida pelos ventos vivendo das suas mezinhas, do que o mar que para bem aventurança do pobre não é latifúndio dá, e de alguma esmola.

Embrulhinho de trapos enjeitado lhe coube como fardo, uns olhos luzentes já bem abertos sobre o mundo e uma boa disposição que nem a fome nem o incómodo alteravam. Um riso cristalino que deu ânimos à anciã, coisinha sem nome a que prenominou de Lua, até ver.

Mais tarde, por constrangimento administrativo, escolheu Isabel, tradição herdada, tudo Fernandos e Isabeís na família tão longe que se recorde, mesmo se já não se lembrava da origem há cinco séculos na Andaluzia, quando os reis católicos ordenaram mais uma vaga de baptismos forçados e que os padres impunham Fernando ou Isabel em homenagem aos soberbos soberanos.

E a velhota acendia a sua velinha todas as sextas, por respeito com os antepassados que por fazê-lo acabaram numa inquisitória fogueira…

Lua amamentada por uma vizinha pródiga em leite tornou-se Isabel cujo corpo enrijecia com as proteínas do lingueirão, da sardinha e dos sonhos de pão e azeite, doces nem o que eram sabia.

Duas cadelas as tinham adoptado, nos invernos frios no casebre, cujas frinchas dos tabiques se tapavam com jornais apanhados no lixo, dormiam as quatro numa enxerga de algas, a velha e a menina no meio, uma cadela de cada lado, uma manta traçada acalmando lhes o tiritar… e a burra á enxerga encostada difundindo o seu fedorento calor.

Noites de vento cristando as ondas num salgado cintilar…

No verão, um vizinho grelhava carne que servia com pão caseiro aos veraneantes, o que era manjar dos deuses, limpava-se a carne aos ossos que as pessoas desdenhavam, comiam se as sobras de pão, e os cães acabavam a tarefa.

Também iam elas pela serra fora levando alívio a quem podiam, voltavam com algum azeite, uns ovos, umas azeitonas, alguma hortaliça, por vezes um queijinho…

Pelas estradas seguiam, a menina encavalitada e a velha levando o asineo de mão mansa.

Bebiam água das bicas, tome uma laranja para a sua menina apiedavam-se uns ou outros mais abastados, uma sardinha sobre uma fatia de pão, uma sobra de queijo… tempos em que as estradas eram convívio, em que se andava com calma, tudo sendo pretexto a paragem e troca de impressões. Em que se olhava para os outros.

Veio o tempo do ensino obrigatório, hora a meia a pé, os sapatos, dados pelas instituições de caridade, feriam os pés e só eram calçados á soleira da escola primária, segundas solas que vinham disfarçar as primeiras…

Então a menina chama-se Isabel Maria ou Maria Isabel? Só Isabel, s’toura… Sua insolente! – réguada - amanhã quero que me diga se é Isabel Maria ou Maria Isabel, isto só visto, nem baptizada é, e a avó nem vai à missa… Se calhar são comunistas?

Porque não vai para o recreio? Fazem lhe judiarias? Ah, não quer brincar mas quer estudar para ser homem e ir para o mar? Esta criança não anda boa, basta lhe saber de costura e cozinha para tratar do marido e dos filhos que tiver! Ah não quer? Então fique se por aí a estudar, quem sabe se…

E a velhota a procurar jornais abandonados depois de lidos, pedir livros emprestados, é para a minha netinha que ela quer saber tudo o que vai pelo mundo… as pessoas, curiosas e desconfiadas ao principio, depressa se afeiçoaram à velha e à criança que queria aprender para ir conquistar terras e mares.

O resto não vou contar, como em todas as história da vida há bom e há mau, a criança foi para o mar e correu oceanos, a avó esperando o seu regresso tal mulher de marinheiro, reza a história que morreu muito idosa e feliz levando o olhar brilhante da neta num último sopro, e sorrindo-lhe murmurou: minha Lua…



Como sempre o autor inventou tudo, sobretudo quando como eu vem de outro planeta… por isso fique aqui dito que qualquer semelhança com gentes ou lugares desta terra é mera coincidência e não implica qualquer responsabilidade por parte do autor.




6 comments

Armando Taborda said:

...por certo que os Reis Católicos olham da eternidade com ternura a saga marítima da Isabel que ainda hoje quer saber tudo...
12 years ago ( translate )

Xata replied to Armando Taborda:

Não me parece que a ternura fosse um sentimento que eles conhecessem, Armando, sobretudo em relação a gente de sangue que consideravam "impuro"...
12 years ago ( translate )

Armando Taborda replied to :

...a ternura não tem classes, Isabel...
12 years ago ( translate )

Xata replied to :

...mas pode ter história!
Não posso crer que haja ternura em dois seres que deitaram na miséria, fizeram matar e estão na origem de tantas atrocidades cometidas contra um povo...e não só.
12 years ago ( translate )

Armando Taborda replied to :

...a história está cheia de inquisições e iniquidades...usam-se muito para obter progresso, diz-se...
12 years ago ( translate )

Xata replied to :

Dizes bem, é que é mesmo......tristeza...
12 years ago ( translate )