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Parêntese para lusófonos - 11 ...Amor do Tio Velhote ...

Chega te a mim, menina da praia, como quando eras moça, lembras te? O teu corpinho moído da ceifa chegava se perto do meu, tio ensina me, e sacavas da navalhinha para na madeira tosca aprenderes a esculpir as figurinhas do presépio.

Aprendeste depressa, eras mais dada aos animais que ás gentes, entre os teus dedos tomavam vida burro atrás burro… para o menino é que não tinhas jeito nenhum, até nisso mostravas a tua falta de embeiço pelas criancinhas…

Depois lá os pintava o meu Luís que Deus tem, tanto gosto pela tinta tinha o moço, queimavam se lhe as pestanas a tanto pintar, e antes do Natal o Eugénio – lembras te, o do beiço rachado que ia pelos montes com uma mula ruça chamada Catarina, sabes o porquê de tal nome, uma vergonha aquilo que se passou co a Catarina – levava as figurinhas todas, sempre era algum dinheirinho mais para nós.

Quem me dera uma cigarrada… já nem esse gosto posso ter, corno da velhice e da doença. Ainda se fumasses pedia te que o fizesses ao meu lado, sempre aproveitava algum sem carregar com as culpas!

Eras franzina e de noite rapidamente ficavas entenguida, então eu cobria te com a minha camisa e olhava para ti, tão criança, tão frágil no teu primeiro sono, pegava te ao colo e ia estender te na enxerga ao lado das minhas filhas…

Eu era moiral ou moural, como queiras, moural vem de mouro, mouro para dizer escravo. Mouro era eu, a guardar as ovelhas do patrão, maldito do Lopes que os vermes carcomeram, de sol a sol e mais ainda pela noite fora se alguma se tresmalhasse ou parisse mal.

Corri esses cerros todos, conheço cada moita, cada barranco, cada pedra, todas as sombras de todas as azinheiras daqui ao Borato, do cerro da Galinha ao barranco do Trespasse, e mais ainda andei por aí, quando nã mais havia pasto lá partia pra Beja co o ribanho, dois ou três meses sem ver a mulher nem os moços, a dormir ao relento, comer pão, beber água dos poços, andava sujo, fedorento como um saca rabos…

Pior era o inverno, com o frio que cortava tanto e o capote tã gasto, até levava jornais debaixo da camisa para aquecer, eu era rijo mas mesmo assim sofria, ser pobre é ser tã castigado.

Lembro me das mulheres andarem à azeitona, chovia como se o outro lá em cima tivesse esquecido de fechar o chuveiro, as mulheres encharcadas e entenguidas pediram ao Palmeira se nã dava a jorna por acabada, nunca se viu chuva derreter os ossos suas cabras mandrionas, disse ele, ser pobre é desdita, digo eu.

Agora as minhas pernas já nã me levam, de casa à bica, da bica a casa, às vezes como hoje até à eira para recordar, éramos pobrezinhos, mas mesmo assim tínhamos alegrias, riamos muito de qualquer coisa, agora vejo tudo isto ao abandono a derrumbar se, e vêm me saudades daqueles tempos.

No monte nã havia luz, estes candeeiros que acendem se sozinhos, as ruas nã estavam alcatroadas mas ninguém se espetava no chão, e as estrelas nã eram apagadas por estes malditos candeeiros, agora já nem o prazer de as contar eu tenho.

Pelas ruas iam as galinhas á mistura com os cães, os burros nas ramadas entre as casas, tinha tudo tanta vida. A gente cantava sempre, tinhas uma voz tão linda, tão grave que ao ouvir te até os homens choravam, mas até tu, menina da praia, deixaste de cantar.

Antigamente a gente era humilde, ajudava se, ficava feliz com pouco, agora anda tudo soberbo, a torcer o nariz como gente fina, nã suportam comer açordas porque é comida de pobre, já nã falam uns com os outros, preferem ficar parvos em casa a olhar prás novelas…

Olha lá vai o avião das nove, achas que virá da Espanha? É que passa todos os dia à mesma hora menos aos domingos… e dá me a hora do recolher, senão a velha inda me moí…que lhe prometi caçar uns gambuzinos para cozer co arroz e nunca cumpri… anda daí, dá me o braço, acompanha o teu Ti Velhote até casa…






Como sempre o autor inventou tudo, sobretudo quando como eu vem de outro planeta… por isso fique aqui dito que qualquer semelhança com gentes ou lugares desta terra é mera coincidência e não implica qualquer responsabilidade por parte do autor.

2 comments

Armando Taborda said:

...uma bela história para antes do Natal, e também para depois...
11 years ago ( translate )

Xata replied to Armando Taborda:

Natal... quem me dera estar com o meu tio Velhote e não aqui de castigo!
11 years ago ( translate )