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Parêntese para lusófonos - 1


Tenho duas vidas:



Uma é algarvia, as minhas raízes, cuja traça cada vez mais se apaga frente à conquista do betão, do turismo, dos padrões globalizantes.

Um apartamento moderno e luxuoso no último piso de um desses edifícios de que não gosto, a casinha algarvia com açoteia á beira-mar tendo se tornado um mito para sonhadores e milionários.

Luxo da matéria, sem espalhafato, simples no recheio, principalmente composto por estantes carregadas de livros.

E duas sacadas cheias de cactos.

O nosso grupinho, 4 borboletas velhas ás quais se junta o meu marido, somos vizinhos e encontramo-nos amiúde para beber a bica, refazer o mundo, sonhar, rever posições, desabafar, relembrar, rir ou simplesmente olhar para o mar em silêncio.

Os amigos de Andalucia, as grandes discussões filosóficas, as teorias niilistas feitas para serem imediatamente desfeitas, as reuniões gastronomicamente filosóficas em que até inventamos pratos a condizerem com o tema do dia, grandes gargalhadas e grandes contemplações caladas.

Passeios pela praia a maré baixa, pela mata a preia-mar, fora de época balnear, claro está, com a canita a correr atrás dos pilritos e espantando gaivotas, caçando lagartinhos ou ilusões.

Aqui amamo-nos com frenesi e medo de nos perdermos.







A outra vida é alentejana, o amor do campo e de um modus vivendi em que as prioridades e preocupações nada têm que ver com a publicidade televisiva.

Uma casinha de bonecas, antigo palheiro, uma sala-cozinha-casa de jantar, um quarto, uma casa de banho e uma arrecadação.

E o pátio “andaluz”, criado na ruína dos antigos saleiro e oficina de alfaiate, oásis de felicidade.

Cada vez mais me sinto alentejana, o ritmo de vida é calmo, a gente pacífica e sorridente, os gestos do dia a dia tomam outra dimensão.

Já não se lava a roupa na ribeira mas ainda se põe a branca a corar na erva do campo, estender a roupa deixa de ser frete para ser convívio, ora passa um ou outra sempre com uma palavrinha ou até uma ajudinha.

As pessoas ainda trocam o que têm pelo que lhes falta, ó tia Maria empreste me um limão, ó Ana roubo te um pouco de vinho á pipa para não abrir uma garrafa só para temperar os bifes…dona Isabel, está aí o seu marido? É que a minha vaca deixou de pastar, o meu cão tá coxo…

Aqui não se fala do último reality show em voga ou na roupa que se usa ou não, aqui qualquer trapo serve e as conversas correm sobre as hortas, a apanha das amêndoas, da azeitona, dos figos, o que se faz para o almoço... E as coisas da vida, com esse fatalismo que é característica e desgraça do nosso povo do sul.

Come se simplesmente e bem, açordas, cozidos, porco preto, ovos, a hortaliça que o campo dá.

Passam as carrinhas dos vendedores ambulantes, vem aí o pão do Azinhal, sim mas esse só é bom para torradas, para sopas é melhor o de São Miguel, pois sim mas eu gosto mais do do Roncão… as pepias do Azinhal são as melhores, enquanto que as costas de gila de São Miguel são incomparáveis…

Os caixotes de lixo não são urbanos, aqui nada tem desperdício, há quem tenha porcos, ovelhas, galinhas, cães, as sobras vão sempre para um ou outro, os baldes estão ás portas.

Grandes passeios damos pelo campo, tornado pousio forçado por uma Europa cujas motivações ninguém entende, a canita “caçando” coelhos, lebres, perdizes, os dois velhos atrás dela tentando aguentar com o ritmo da sua juventude montada sobre quatro patinhas…

Serões de verão no largo com os vizinhos, cada um puxando da sua cadeira e da sua história, esperando pelo fresco da noite adiantada para poder dormir e amar.

Noites de inverno frente á lareira com um livro ou um filme, ou simplesmente deixando a imaginação cavalgar as labaredas…

Os jovens cá do monte gostam da companhia dos mais velhos, ajudam no campo, conhecem a natureza e também vão á internet.

Aqui amamo-nos com calma e no tempo certo.







E assim passam os meus dias, cada um sendo uma vitória…


Como sempre o autor inventou tudo, sobretudo quando como eu vem de outro planeta… por isso fique aqui dito que qualquer semelhança com gentes ou lugares desta terra é mera coincidência e não implica qualquer responsabilidade por parte do autor.

7 comments

Armando Taborda said:

...não te desenraízes nunca, Isabel...eu disse um dia que "a insónia é o medo de nos vermos a decepar raízes"...e tu, felizmente, dormes bem...
12 years ago ( translate )

Xata replied to Armando Taborda:

Cada vez menos durmo... quando vejo as casas tradicionais substituídas por caixotes de betão, quando vejo que o ultimo amolador do Sotavento já vai deixar a profissão... que já não há pregoeiros... quando tudo se torna estranho e diferente, como se de uma outra terra se tratasse... que os meus conterrâneos prostituíram se ao turismo...
12 years ago ( translate )

Armando Taborda replied to :

...dormes menos, mas bem, tranquila contigo própria....
12 years ago ( translate )

Xata replied to :

Isso sim... mas sempre na dúvida...
12 years ago ( translate )

J. Gafarot said:

Pois. Agora só se amola a Sotavento e esta não é fraca, é lenta; acho que há um tempo para falar devagar e estar calado e esta fala, é esse tempo. Eu até obedeço, pois.
10 years ago ( translate )

Xata said:

Pois… e eu escrevo.
10 years ago ( translate )

J. Gafarot said:

A chacun sa verité.
10 years ago ( translate )